terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O que a Bíblia NÃO diz sobre anjos

A figura dos anjos está ampla e variadamente misturada em nossa tradição cristã.  E, embora não haja nenhum capítulo que trate especificamente de sua descrição, eles são citados na Bíblia com freqüência.  É verdade também que aqui e ali acrescentamos algum "conhecimento" herdado de outras tradições não-cristãs, fazendo com que a noção destes seres se tornasse mística, quase folclórica ou mitológica.
Veja na relação a seguir sete coisas que a Bíblia não diz sobre os anjos, mas que muita gente acredita e prega por aí:

1. Anjos com asas – por não haver na Bíblia nenhuma menção detalhada da aparência dos anjos, tudo o que podemos saber é por associação ou imaginação.  Em geral eles são citados apenas como varão.  Mas nunca se fala em asas
A confusão se dá porque figuras como querubins (em Ez 10:5 por exemplo) ou serafins (em Is 6:2) aparecem descritos com asas.  Mas aí já é outra conversa.  Sobre isso, veja o ponto #3 logo abaixo.

2. Jacó lutou com um anjo – esse é clássico.  A citação é da luta de Jacó no vale do rio Jaboque em Gn 32:22-31.  O texto diz que veio um homem que se pôs a lutar com ele até o amanhecer (Gn 32:24 NVI). 
O problema aqui é a expressão na língua original: enquanto os versos Gn 32:1 e 28:12 falam em anjos (no hebraico מלאכי – de מלאך), o versículo da luta se refere a um varão (no hebraico איש – mesmo termo encontrado em Gn 6:9).  Ou seja, literalmente Jacó lutou com um homem.  O mais é interpretação ou dedução.
É verdade que quando seu nome foi mudado, a explicação foi porque ele lutou com Deus e com homens e venceu (Gn 32:28 NVI).  Só que ainda neste versículo não se fala em anjos, pois a luta foi com Deus e com homens.

3. Hierarquia dos anjos – como disse, não há capítulo bíblico que trata de maneira explícita – ou didática – dos anjos.  Eles simplesmente são citados sem maiores detalhes ou preocupação.  Assim, a Bíblia não faz nenhuma referência à hierarquia.   E como se chegou a isso?  O primeiro escritor cristão a tratar do tema foi Clemente de Alexandria no século II e depois se consolidando com um texto intitulado "A Hierarquia Celeste" (em latim: De Coelesti Hierarchia) atribuído a Dionísio Aeropagita.
Ausente nas páginas bíblicas, a verdade contudo é que não há uma uniformidade dos comentadores sobre o tema – há hipóteses variadas.  Os títulos mais utilizados, a partir do texto bíblico, para atribuir hierarquia são: Querubim (כרוב) – citado na Bíblia como guardião do Éden em Gn 3:24 e colocados sobre o propiciatório em Ex 25:20.  Serafim (שרף) – cuja única citação é Is 6:2.  E Arcanjo (do grego ἀρχάγγελος) – que aparece nos textos de 1Ts 4:16 e Jd 9.  Outros termos comuns são: principados, potestades e por aí vai...  e, como disse, não há consenso.
Eu sei que há outros textos que podem indicar uma hierarquia, como por exemplo Js 5:13-15.  Nesta passagem, Josué olhou para cima e viu um homem em pé (Js 5:13 NVI – no hebraico איש).  É certo que ele se apresenta com um título que indica uma patente militar: comandante do exército do Senhor (no hebraico שר־צבא־יהוה), mas daí uma classificação hierárquica angelical é extrapolação.

4. Anjo da morte – aqui também a citação bíblica é dúbia.  Costumeiramente a primeira referência é ao evento da Páscoa quando do Êxodo dos Filhos de Israel do Egito.  No texto é dito que o Senhor não permitirá que o destruidor entre na casa de vocês para matá-los (Ex 12:23 NVI – no hebraico משחית de שחת).  A mesma expressão vai aparecer em 2Sm 24:16 / 1Cr 21:15.  E embora a referência direta a um anjo executando tal serviço só apareça nos textos históricos, em nenhum deles a citação é explícita como "anjo da morte". 
Há outras duas passagens que merecem citação: em Pv 16:14 aparece a expressão literal anjo da morte (מלאכי־מות) mas está claramente usada num sentido conotativo, figurado e poético.  Citá-lo aqui como um ser literal é forçar bastante o texto.  O outro texto é Jó 33:22 (onde a palavra hebraica é ממתים) e também o senso poético deve prevalecer.  No mais é só inferência.
No NT o texto de Ap 9:11 cita Abaddon (em hebraico אבדון) que em grego é Apollion (Απολλύων) como sendo o anjo do abismo.  Penso que ainda aqui anjo da morte não cabe.
Na tradição judaica extra-bíblica existem figuras de anjos da morte – ou malditos – como Azrael ou Samael.  Mas por ser fora do texto canônico, então vou poupar o comentário.

5. Anjo da guarda – sobre este tema eu já comentei em outro post.  Lá eu analisei o texto de Mt 18:10 e entendi, a partir do próprio texto e contexto, que a figura singular e sobrenatural de um anjo destacado para cuidar exclusivamente de alguém não tem base (se quiser ler mais, dê uma olhada no link). 
Outro texto que já vi sendo usado para argumentar sobre tais anjos é Ex 23:20.  Também entendo que a conclusão deve se aproximar da que chegamos em relação ao texto evangélico.

6. Criancinhas se tornam anjos – essa é simplesmente sem nexo.  Confesso que tenho dificuldade até de encontrar qualquer texto que faça alguma ligação, mesmo tênue.  Mesmo citações como a de Mt 19:14 – "Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas" – não diz nada sobre criancinhas que morrem virarem anjinhos.
A cultura popular criou a crença de recém-nascidos que morrem são levados para o céu como anjos.  Isso é útil para consolar os enlutados, mas nada tem de verdade bíblica nem cristã.  Gente é gente e anjo é anjo.

7. Anjos têm filhos – sobre isso também já comentei quando postei sobre os gigantes citados em Gn 6:4 (este é o link se quiser reler).  Ainda considere:
Lá no texto do Gênesis pode-se ler que quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas lhes deram filhos.  Bem, tratar os filhos de Deus (no hebraico האלהים בני) como anjos, além de não fazer sentido em todo o contexto bíblico, distorce a exegese do texto.

* Quanto ao que eu posso compreender da própria Bíblia a cerca do papel dos anjos, vou citar o que escrevi comentando Mateus 18:

Em toda a Bíblia os anjos assistem na sala do trono para o louvar (cito por exemplo o Sl 103:20), servem e obedecem só a ele e são enviados pelo próprio Deus para missões específicas, principalmente quando é preciso agir em favor dos seus pupilos (lembre de Dn 6:22). 


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